Orandir Portassi Lucas iniciou sua carreira em 1965, no Guarany de Bagé (RS), sua cidade natal. No mesmo ano, foi goleador da temporada, com 30 gols, fazendo cinco deles em uma só partida, na vitória por 6 a 1 sobre o Aimoré.
O jogador se destacou na campanha do Internacional que foi vice-campeão do Robertão (atual Campeonato Brasileiro), porém, Orandir não chegou a esta etapa, pois o clube recebeu uma proposta irrecusável do Cruzeiro (MG) e vendeu o atleta, que esteve na mira de diversos grandes clubes do país na época.
A partir de 1973, jogou pelo Atlético Paranaense, onde se consagrou. Com fama de raçudo, gostava de aplicar a famosa “pedalada” (drible que foi a marca de Robinho, posteriormente), uma jogada em velocidade, que lhe valeu o apelido de Didi Pedalada. Jogou também em clubes do México e Estados Unidos entre 1974 e 1976.
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A fonte secou
Na volta a Porto Alegre, a fonte havia secado. Sem dinheiro e com um futebol “normal” não conseguia novos contratos. Então, para sobreviver, pediu ajuda aos amigos. Recorreu a Jorge Andrade, lateral que jogou com ele no Internacional.
Andrade conhecia uma figura polêmica e muito presente na rotina do Inter, o então delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de Porto Alegre, Pedro Seelig. O delegado era muito influente no Inter e tinha passe livre até mesmo no vestiário, além de uma grande amizade com Paulo Roberto Falcão, craque máximo do Internacional. Além disso, Reinaldo Salomão, procurador de Falcão, era cunhado de Seelig e delegado do DOPS.
“Vamos dizer assim, ele pintou bem. Veio arrebentando, era muito novo, também. Então, era um cara que, pô, daí vai sair alguma coisa. Só que, depois, realmente, ele baixou, caiu na média”, relembra Cláudio Dienstmann, jornalista especialista na história do Internacional, conforme matéria publicada originalmente no Puntero Izquierdo, em 2018, e disponível no Ludopédio.
Recomeço – a Polícia Civil
Depois de encerrar a carreira no futebol, Didi Pedalada voltou a ser apenas Orandir Portassi Lucas, escrivão de polícia. Em 1978, Orandir era integrante da sigilosa Operação Condor, ação conjunta entre o DOPS gaúcho e a polícia uruguaia, que culminou no sequestro de dois uruguaios no Brasil.
“Ele era um cara muito alegre, muito de bem com a vida. Eu não participei dessa fase dele, da vida de policial dele, mas, cara, eu até não consigo imaginar o Didi assim… Ele era um cara feliz. Enfim, essa biografia de policial dele, de participante de sequestro, ela não corresponde ao Didi que a gente conhecia como jogador”, relembra Cláudio Dienstmann (foto acima).
Ação coordenada
Os uruguaios em questão eram Miriam Celiberti e Universindo Diaz (ambos na foto acima), militantes do PVP, o Partido de la Victoria del Pueblo, grupo rebelde ao governo uruguaio. Apesar de terem anistia internacional, sendo Universindo vindo da Suécia e Lilian, da Itália, o casal se alocou no Brasil para receber informações do Uruguai e fazer denúncias para organizações de defesa dos direitos humanos na Europa e, assim, conter a crueldade militar no Uruguai.
Estava indo tudo bem, até que o governo uruguaio conseguiu desmontar o PVP no país e descobrir o paradeiro do casal. Aí começava a participação do DOPS gaúcho.
Colorado até a morte
Torcedor fervoroso do Peñarol e do Internacional, Universindo estava saindo com os filhos para assistir ao jogo do Colorado, no Beira Rio, quando foi duramente abordado pelos agentes de repressão, incluindo Orandir.
Uma mórbida coincidência é que Pedro Seelig comandou a ação justamente com uma camisa do Inter, igual a seu alvo. A surra em Universindo começou dentro do apartamento, com os golpes de Didi Pedalada. Lilian, ao mesmo tempo, era presa pela polícia na rodoviária de Porto Alegre, enquanto aguardava um casal de refugiados que abrigaria em sua casa.
Até este momento, a identidade de Didi Pedalada estava incólume. Ele era apenas o Orandir Portassi Lucas, agente da operação. Mas isso logo mudaria.
Lilian foi obrigada pelo DOPS a marcar um encontro com o presidente do PVP, Hugo Cores (foto acima), para que fosse também preso. Ao fazer a ligação, vigiada pelos policiais, Lilian conseguiu avisar, por meio de um código, que ela estava em perigo e que o presidente não deveria ir ao encontro. Avisado do ocorrido, logo em seguida, Hugo Cores, que estava em São Paulo, conseguiu contato anônimo com o jornalista e chefe de redação da Veja Porto Alegre, Luiz Cláudio Cunha.
Ajuda inesperada
Este, estranhando o contato, foi ao endereço checar a informação, juntamente com o fotógrafo esportivo J.B. Scalco, da Revista Placar. Ao chegarem no apartamento, Lilian (sob a mira do revólver) abre a porta e logo o jornalista começa a conversar em espanhol. Foi a deixa para que a polícia achasse que ele era o tal Hugo Cores e logo os dois jornalistas estavam sob a mira das armas de Seelig e Pedalada. Extremamente nervosos e sem entender nada, logo os jornalistas tentaram se explicar, dizendo como tudo aconteceu.
“Um dos caras saiu da sala, eu senti que era o cara de bigodinho que me recebeu com uma pistola na porta. Ele saiu do apartamento, foi lá para a rua, certamente para pedir instruções. Aí ficou aquele silêncio, aquele constrangimento. Eu tentei descontrair. Falei o seguinte: ‘pô, parece que eu entrei numa fria, né?’ Uma piada… O cara corpulento, negro, que na porta recebeu o Scalco com uma pistola, disse ‘uma baita fria, tchê’. Foi a única expressão que ele usou na hora”, conta o jornalista.
Descobriu-se depois que o “cara corpulento” era Didi Pedalada.
A revelação
Após o susto, os jornalistas foram liberados, mas ficou aquele remorso por ter deixado a mulher à mercê de policiais tão cruéis. A dupla então resolveu investigar o caso. Foram meses de pesquisas, entrevistas e viagens até que Scalco e Cunha tivessem plena certeza do que tinham visto no apartamento. O homem que ameaçou J.B. com uma arma era realmente Didi Pedalada.
Começou então um enorme movimento da mídia nacional, advogados e órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos para provar o sequestro da família no Brasil e a prisão do casal no Uruguai. Oficialmente, nem a Polícia Federal, nem o governo brasileiro classificavam o caso como um sequestro.
Uma luz no fim do túnel
O cenário só mudou quando o promotor de justiça Dirceu Pinto denunciou Didi Pedalada, João Augusto da Rosa (foto acima), Pedro Seelig e Janito Keppler (mais um da equipe de Seelig) pelo sequestro.
Em 21 de julho de 1980, Didi Pedalada e João Augusto da Rosa foram condenados a uma pena de seis meses de detenção pelo crime de abuso de autoridade, com a proibição de trabalhar em Porto Alegre por dois anos. Mais tarde, João Augusto da Rosa conseguiu um recurso para não cumprir a pena. Pedro Seelig e Janito Keppler foram absolvidos por falta de provas. Apenas Didi Pedalada cumpriu a pena.
Apesar de ser “pequeno” no organograma militar brasileiro, com a condenação Didi entrou para uma lista que tem, entre outros, Rafael Videla, ex-ditador argentino, e Manuel Contreras, chefe da DINA, a temida polícia secreta do governo de Augusto Pinochet. Mesmo assim, recebeu uma menção honrosa da Secretaria de Segurança gaúcha. O caso foi o único a ganhar publicidade nos dez anos da Operação Condor.
Em 1983, Didi Pedalada voltou à ativa e foi promovido para escrivão até se aposentar. Desde que cumpriu a pena, Didi nunca mais falou sobre o assunto e não permitia fotos ou entrevistas. Ele morreu em 1º de janeiro de 2005, em Porto Alegre, aos 60 anos, devido a uma parada cardíaca, decorrente de complicações no fígado e diabetes. O corpo foi sepultado na capital gaúcha.
Pela matéria investigativa, os jornalistas Luiz Cláudio Cunha e J.B. Scalco ganharam o Prêmio Esso de jornalismo em 1979. Em 1983. J.B. Scalco faleceu. Em 2008, Luiz Cláudio Cunha eternizou o caso, tornando-o um livro: Operação Condor — O sequestro dos uruguaios.